Vias interconetadas ligam os lípidos plasmáticos, a microbiota fecal e a atividade cerebral à cognição associada à desnutrição infantil
ARTIGO COMENTADO - Rubrica pediatrica
Pelo Prof. Emmanuel Mas
Gastroenterologia e Nutrição, Hospital Saint-Antoine, Paris, França
Comentário ao artigo de Portlock et al., Nat Commun 1
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Sobre este artigo
A desnutrição afeta todos os anos mais de 30 milhões de crianças e tem repercussões imediatas e duradouras profundas. As crianças que sobrevivem a ela sofrem frequentemente sequelas neurocognitivas duradouras que afetam o seu desempenho escolar e a sua situação socioeconómica. Os mecanismos que estão na origem dessas consequências são mal compreendidos. Com o auxílio de modelos SHAP interpretados através de uma fl oresta aleatória multissistémica e de uma análise de rede, os autores mostram que a desnutrição aguda moderada (MAM – malnutrition aiguë modérée) está associada a um aumento da presença de Rothia mucilaginosa e Streptococcus salivarius nas fezes e a uma diminuição de Bacteroides fragilis num grupo de crianças com um ano de idade em Dacca, no Bangladesh. Essas alterações no microbioma formam vias interconetadas que implicam uma redução dos níveis plasmáticos de ácidos gordos de cadeia ímpar, uma diminuição da potência gama e beta do eletroencefalograma nas regiões temporal e frontal do cérebro e uma redução da vocalização. Estes resultados confi rmam a hipótese de que uma colonização prolongada por espécies comensais orais retarda o desenvolvimento do microbioma intestinal e do cérebro. Embora as relações de causalidade devam ser validadas por meio de
dados empíricos, este estudo fornece informações úteis para melhorar as intervenções direcionadas aos défi ces de neurodesenvolvimento associados à MAM.
O que é que já sabemos sobre isto?
A desnutrição infantil é um problema grave de saúde pública e uma das principais causas de mortalidade antes dos cinco anos de idade. A desnutrição aguda moderada (MAM – malnutrition aiguë modérée) está associada a um atraso no desenvolvimento neurocognitivo, mas a relação ainda é pouco conhecida. Também está associada a uma disbiose da microbiota intestinal (MI), cuja formação é retardada e marcada por um enriquecimento das espécies Bifi dobacterium e Escherichia. Essas perturbações da MI
podem ter um impacto no desenvolvimento cerebral através do eixo intestino-cérebro, devido a problemas de absorção de nutrientes ou de acumulação de metabolitos tóxicos. Essa comunicação entre órgãos pode ser mediada indiretamente pelos lípidos plasmáticos, pois os lípidos são o constituinte essencial do cérebro e são modulados por metabolitos da MI, como os ácidos biliares.
Quais são as principais conclusões deste estudo?
Este estudo foi realizado na região de Mirpur, no Bangladesh, e comparou 159 crianças com MAM com 75 controlos bem nutridos com 12 meses de idade. A MAM foi defi nida por uma relação peso/altura entre -2 e -3 pontuações-z. O grupo de MAM estava significativamente associado a fatores sociodemográfi cos (hábitos de higiene, modo de parto e tratamento da água – chaleira).
A MAM foi associada a uma diversidade alfa bacteriana diminuída (Shannon), a uma prevalência e abundância aumentadas de Rothia mucilaginosa e Streptococcus salivarius (figura 1) e a uma relação Bacteroidetes/Firmicutes aumentada. As análises funcionais do MI não apresentaram diferenças.
O eletroencefalograma (EEG) demonstrou uma diminuição signifi cativa das frequências beta (12-30 Hz) e gama (30-45 Hz) ao nível das regiões temporal e frontal em crianças com MAM. Também foi observada uma diminuição signifi cativa das pontuações de comunicação expressiva, de motricidade fi na e global, bem como da vocalização.
Após correção do tipo de parto, do sexo e da duração da amamentação exclusiva, a MAM foi associada a alterações do lipidoma plasmático, com uma abundância relativa aumentada de 128 (16%) compostos e diminuída de 189 (24%) (figura 2).
A integração de dados multimodais demonstrou que os melhores preditores de MAM aos 12 meses foram: 1) os lípidos plasmáticos (AUROC = 0,95 ± 0,05); 2) as medidas cerebrais e comportamentais (pontuação de Wolke, EEG, pontuação de Bayley) (AUROC = 0,73 ± 0,05, 0,71 ± 0,10, 0,68 ± 0,07, respetivamente); 3) o perfi l taxonómico, funcional e dos metabolitos previstos do microbioma fecal (AUROC = 0,56 ± 0,07, 0,53 ± 0,07, 0,52 ± 0,06). De notar a importância dos dados relacionados com o microbioma fecal para prever a MAM na análise multimodal, apesar do baixo desempenho do microbioma fecal (figura 3).
A análise multimodal das redes permitiu prever que um cluster de B. fragilis, de vias de fermentação do piruvato, de ceramidas plasmáticas, de EEG e de comunicação expressiva estava fortemente correlacionado com um bom estado nutricional aos 12 meses. Por último, o efeito mais forte como interação entre espécies foi observado entre R. mucilaginosa e S. salivarius, cuja presença combinada aumentou a previsão de MAM aos 12 meses.
Quais são as consequências práticas?
Este estudo demonstra a importância do MI no estado nutricional do lactente. A presença de bactérias orais comensais gram-positivas e anaeróbias facultativas, como R. mucilaginosa e S. salivarius, pode estar na origem de uma desregulação dos ácidos biliares. Isso pode dar origem a alterações lipídicas significativas para o desenvolvimento cerebral.
Além disso, é importante salientar o benefício da B. fragilis relativamente às vias de fermentação no estado nutricional aos 12 meses.
- A persistência ao nível intestinal de bactérias comensais Rothia mucilaginosa e Streptococcus salivarius em crianças com MAM substitui a colonização por Bacteroides fragilis. Isso interfere na síntese de ácidos gordos, que são essenciais para o desenvolvimento cerebral
CONCLUSÃO
Este estudo sublinha o facto de a disbiose da microbiota intestinal estar associada a anomalias do desenvolvimento cerebral
presentes em crianças com MAM, através de alterações nos lipídios plasmáticos.